terça-feira, 11 de dezembro de 2012

NEON VISTO DA SARJETA

Estamos todos na sarjeta, mas alguns de nós estão admirando as estrelas.
(Oscar Wilde)




Andarilho na noite. Excitação e melancolia. Em doses iguais. Encurralado, exilado social, Sid pode exercer sua identidade  na penumbra do umbral que é reservado  para pessoas como ele. Podia não ser assim, tentou fazer com que não fosse. Não teve sucesso. É esse que ele é, e não outro. O marginal e seu submundo. É onde viverá e morrerá. Anônima estatística da plêiade interminável de “desviados da noite”.



Excitação e melancolia. Essa é a sua realidade. Todo o resto é espera.



Nos nichos do subterrâneo, pessoas são sombras. Sentimentos são instintos. O medo é um elemento, mas não paralisa. Não raro é combustível na locomotiva desgovernada do desejo. Homens...  como zumbis... se cruzam nos ambientes fétidos e escuros. Muitas vezes exageradamente  quentes ou frios. Mas não importa. Lá esta o  alívio da carne, que eventualmente virá. Não se falam, mas se conhecem. Não os rostos, mas de maneira silenciosa e sutil, se  irmanam. Cumprimentos num diálogo silencioso. Sem preguntas ou respostas, apenas a simbiose de  mentes confusas, assustadas, excitadas.



As sombras não se tocam mas se confortam, afagam e legitimizam umas as outras. A única paz possível. A única aceitação disponível. O alívio da urgência visceral de homens que desejam corpos de outros homens. A satisfação da inegável necessidade do sexo.  O preço a ser pago? Pouco importa. Nesse momento, não importa nem um pouco.



Sid não queria ser submundo. Esse, definitivamente não era seu plano. Sua busca era por amor. Mas em sua improvável inocência, encontrou amor de alma,  mas não de corpo. Uma armadilha do destino. Poderia ter tido o melhor dos desfechos. Mas não será assim, e tal vicissitude já é aceita como inevitável.



“Você vai... novamente?”

“Novamente e sempre. Qual minha alternativa? Eu preciso ser desejado. Preciso muito. Que escolha você me dá?”

“Somos diferentes. O que é tão forte em você não é parte de mim. Simplesmente não é.”

“Já não luto contra isso. Só queria saber...”

“Saber o quê?”

“O que você queria comigo? Não era um parceiro, pois não gosta de sexo comigo. Não era um amigo, pois sequer vou à sua casa.”



Silêncio. Nenhuma resposta. Era só o que Sid podia esperar, e sabia disso. Mas dessa vez, como em algumas outras, permitiu-se um pequeno desabafo:



“Você não pode ser HOMOssexual, ou HETEROssexual ou mesmo BIssexual. Sabe por que? Todos esses termos possuem a palavra “sexual” contida neles. E isso pressupõe interação com outro ser humano. Você é repleto de humanidade, mas sua empatia com o outro só vai até certo ponto. Não permite que te toquem de maneira não protocolar, que cheguem muito perto. Que fiquem por perto.  Seu afeto é forte, mas tem de acontecer de uma certa distância profilática.”



Novamente, silêncio.



“Bem, essa é a sua doença... apesar de você não enxergar assim. A minha é que você é a única pessoa que posso e quero amar. A única que me comove,  que quero ter por perto. Mas não consigo derrubar o muro de isolamento que frequentemente constrói. E fico de fora te vendo fazer coisas que não me contém. O irônico de tudo isso, é que... mesmo assim...não poderia te amar mais.”



Uma troca de olhares no mais escuro da noite. Na hora que precede a desistência daquele dia, e a sublimação de mais aquele desejo. Aquele olhar é cheio de promessas. Não de qualquer coisa romântica que seja. Sid não procura isso. Já tem seu amor, por mais tortos que sejam os caminhos. E entre extremo rancor e extrema ternura de sua situação, é apenas genitalidade o que procura.



Já é tarde. Logo o sol nascerá. Tudo tem de ser feito rapidamente. Um carro. Economia de palavras. Um beco escuro. Estaciona-se. A expectativa é crescente pelo momento do clímax. Mas não é o que acontece. Sid vê a faca encostada em seu pescoço. É afiada e faz pequenos cortes na pele. O discurso muda,  é agora ríspido e econômico. Carteira, relógio, celular. Tudo é desapaixonadamente entregue. Já não espera mais o alívio de seu desejo. Já não espera mais nada.



Um carro em disparada na noite. O barulho dos pneus. Caído no chão molhado de chuva e urina do beco escuro, Sid sente o sangue que brota de seu ventre. Ele esquenta o corpo, ao mesmo tempo que causa um imenso cansaço. Como um sono. Não há medo. Apenas a promessa de paz.



Já de olhar vidrado, Sid é capaz de enxergar um anúncio em neon que ilumina os últimos momentos de escuridão da noite. Sua mente já está embotada demais para decifrar o significado daquele anúncio. Mas isso não importa. As cores são tão belas! Vê o rosto de seu amado nas luzes. Está deitado em seu colo. Tem seus cabelos afagados. Não poderia haver júbilo maior. Sentindo sua existência fenecer, Sid ainda consegue pensar... “Como eu tenho sorte”. Os olhos se fecham, mas o sorriso permanece, iluminado agora pelos raios de sol do dia que insiste em amanhecer.










segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Paulo, céu azul, arco-íris e a árvore sem raízes

"A virtude é bonita, mas exala um tédio homicida." (Nélson Rodrigues)



Mais um dia no escritório. A mesmice começa no elevador. Paulo já nem levanta os olhos. Sequer para checar se seu andar já chegou. Parece que sua mente sabe o tempo que leva. Seu sexto sentido consegue calcular, instintivamente, quantas paradas aconteceram e quanto falta para que finalmente levante o rosto e veja a porta abrir. Os mesmos rostos. Já não os fita. Não saberia dizer se alguém cortou o cabelo, deixou a barba crescer, ou se alguma mulher está particularmente bem arrumada. Simplesmente não interessa. Enche o pequeno copo plástico de café da garrafa térmica e caminha em direção à sua sala.

Entra e fecha a porta. Tira o paletó. O ar-condicionado está sempre ligado, apesar de não parecer. Só o barulho do aparelho o denuncia, já que  calor é insuportável.  Por que não colocam na potencia alta nos dias quentes como esse? Já nos dias frios, congela-se.  Seria preferível agora a janela aberta, e talvez uma leve brisa para que o ambiente não ficasse tão abafado. Mas sequer sabe como se abre essa janela. Em tantos anos nesse escritório, nunca a viu aberta.

Droga! Será que nunca vão consertar essa cadeira? Ou melhor ainda, troca-la. Isso o incomodava demais! Nada parece adequado. Tudo está em seu lugar como sempre. Mas como sempre, as coisas parecem estar no lugar errado. Não que Paulo saiba qual seria o lugar certo das coisas. Mas não há harmonia em nada ao seu redor. Em nenhum sentido. Isso é inegável, certo?

Certo?

Começa a trabalhar. Folheia os documentos em sua mesa. Estranho... parecem os mesmos papéis, os mesmos relatórios de ontem. E anteontem. E do dia anterior. Seriam? Não, claro que não. Não faria sentido. Mas também, quem se importa? A irrelevância do trabalho que faz todos os dias parece uma entidade à parte. Um ser amorfo, escondido atrás das cortinas. O carcereiro silencioso de sua rotina desimportante.

É um bom emprego, isso não pode ser negado. Quer dizer, é um salário que cobre suas necessidades. Suas necessidades... Bem, Paulo sabe que faz parte de uma minoria desse país. Trabalha em uma firma com credibilidade. Sabe que parentes e amigos próximos sentem uma certa inveja dele. Ah, se eles ao menos soubessem...

Ser um “homem de bem”, modelo do que a sociedade acredita ser o ideal, é uma coisa por demais opressora. O preço da aprovação de todos e da admiração de alguns é alto. Não se saber feliz ou infeliz. Afortunado ou vítima da maior das desgraças: Uma existência tediosa. Enfadonha e desinteressante ao ponto de não se lembrar mais  se algum dia houve uma ambição diferente. Se algum dia houve qualquer ambição. Algo que fizesse o coração bater mais forte. Que desse algum motivo para sair da cama todas as manhãs. Como seria bom ter isso.

Ora, mas não era tão ruim assim. Tinha um casamento sólido, estabilidade e estava relativamente seguro em relação aos anos de aposentadoria. E depois, tinha o plano de saúde, extensivo aos familiares. Estava garantido.

Estava garantido e seguro de como sua vida seria. Até o fim.  

E ali, naquele escritório, tinha a impressão que nada mais existia. Sua janela dava para outro prédio. Um mais alto. Era possível ver outros infelizes em seus cubículos. Havia também o consultório do dentista, sempre com a persiana abaixada até a metade da janela. Jamais foi possível ver seu rosto. Apenas um jaleco branco da cintura para baixo. Poderia ser um jovem, ou um homem de cem anos. A rua, carros e pessoas transitando. Tudo tão pequeno e tão rápido. Era um mundo hostil, aquele das calçadas. Uma barulhenta procissão de pessoas indesejáveis em seu caminho rumo ao escritório. Não percebia qualquer poesia naquela urbanidade a qual era exposto todos os dias, ao chegar e ao partir.

Ah, a maldita cadeira. Rangia e deixava o encosto sempre em um ângulo desfavorável. Será que nunca seria trocada? Tira o paletó e afrouxa o nó da gravata. O telefone toca, mas é ignorado. Na mesa de trabalho, porta retratos com fotos da esposa e filhos. Tenta lembrar-se de quando teriam sido batidas. Não faz a menor ideia. Talvez uma festa. Talvez Natal. Apesar de estar em todas elas, é como se fosse outra pessoa ali. Sorrindo.

Paulo tinha memória de si mesmo quando criança, portador de uma esperança sem tamanho no futuro. Alimentada pelas cores dos desenhos animados e das revistas em quadrinhos. O mundo que  aguardava o adulto que se tornaria era brilhante, excitante em todos os momentos. Havia uma promessa implícita de felicidade, de final feliz, como nos filmes da Sessão da Tarde. Parecia agora ter caído no futuro errado. Como um animal preso em uma armadilha. Sem cores, sem sol, sem céu. Sem os arco-íris que desenhava com seus lápis de cera. Paulo adorava desenhar quando criança.

Quando de um teste psicotécnico para admissão de um emprego, que por sinal acabou não passando, pediram-lhe que desenhasse uma paisagem bucólica. Desenhou o sol, arco-íris, flores e árvores de sua infância. Na avaliação, foi perguntado por que não  havia chão sob as árvores. Estariam elas flutuando no ar? Árvores não possuem raízes no solo? Onde estava o solo? Onde estavam as raízes?  Paulo não cometeu esse erro uma segunda vez. Sabia muito bem onde ficava o solo, e suas raízes estavam bem solidamente fincadas nesse cotidiano que incluía sua segurança, mas excluía sua individualidade. Sua capacidade de sonhar.

Levanta-se de sua cadeira essa responde com um rangido. Chega até a janela e curva o pescoço na mais improvável das posições, tentando visualizar algum pedaço de céu. Impossível uma janela que não mostre o céu! A criança que ele foi, pelo menos, jamais desenharia uma janela assim.  Paulo se sente tão desconfortável. Queria poder libertar seu corpo daquela cela. Libertar seu espírito daquele corpo.

Começou por tirar a gravata. Em seguida a camisa. Sentia-se melhor, menos o personagem que detestava ser na estória que não escreveu. Ou escreveu? Sua pele finalmente conseguia sentir o ar-condicionado. Não demorou para que tirasse toda a roupa. Paulo fecha os olhos e se permite um sorriso. Tranca a porta do escritório. Dirige-se à janela e procura o trinco. Não é possível que tenha sido projetada para ficar sempre fechada. Não encontra nada. É como se o próprio ar natural lhe fosse negado.

Precisava do ar. Precisava do céu.

A nudez facultava-lhe uma liberdade jamais sentida. Como um salvo-conduto em sua busca por realidade. Não a do bom emprego, marido e pai exemplar. A realidade intangível... e inegável dos desenhos de sua infância. Ungido de santa ira contra o fiapo de ser humano que se tornara, Paulo quebra o vidro usando sua luminária de mesa. Ele tinha razão. Há uma brisa que sopra.  Haverá céu também. Um céu azul com arco-íris à sua espera. Não há tempo a perder. Muito já foi perdido. Coloca meio corpo para fora da janela e olha para cima a procura do céu. Ainda não o vê. Volta para dentro.

Paulo percebe que há sangue em suas mãos, e que pessoas começam a bater insistentemente à sua porta. Tanto o sangue quanto o barulho são irrelevantes. Ele tem uma missão. Um céu a encontrar. Dessa vez, sai com o corpo todo e fica em pé no peitoril externo. Estica o pescoço e consegue ver o céu. Azul, com nuvens brancas. Boquiaberto, percebe que bem longe, no horizonte, há um arco-íris. Como uma criança, um pássaro, um Deus... Paulo, nu,  estica seus braços. Da um passo para frente. Quem disse que as árvores não podem flutuar no ar? Quem disse que os sonhos precisam ter raízes?


Na semana seguinte, o substituto de Paulo chegou à firma. Um jovem e promissor executivo.  Foi dada a ele a mesma sala, já com a janela consertada.


A cadeira que rangia, havia sido trocada por uma nova.


quinta-feira, 7 de junho de 2012

Matéria Vida


Estranha a solidão que se sente em um cemitério. É mais uma questão de segredos do que de ausência. Como uma biblioteca abarrotada de livros que nunca leremos. Há tanto lá contido!  O que teriam sido aquelas vidas? Momentos felizes, certamente. Tristes. Melancólicos e de desesperança. Gargalhadas e lágrimas ecoam no silêncio das sepulturas. Basta saber ouvir.

Não precisava supor nada sobre a pessoa cujos restos mortais jaziam naquela em particular. Um homem especial, que transbordava em humanidade, a quem chamava de pai, e que tinha me ensinado da poesia e beleza da vida. Eu estava ali para cuidar do que restava... fisicamente... de sua passagem pela terra. Não havia Matéria Vida ali. Mas sempre me fez bem cuidar de seu lugar de descanso. E depois, meu aniversário seria em poucos dias e eu tenho o hábito de ir lá nessa época para que meu pai possa me dar “parabéns” no teatro esquizofrênico da minha cabeça.

Havia algum tempo que ninguém tratava do local. Muito a  fazer. Capim a ser arrancado. Pintura. Paga-se uma taxa de manutenção para essas coisas, mas claro que nada era feito. Ainda mais quando a família abandonava, não fiscalizava ou visitava. Era o caso. Como tantas vezes em vida, éramos novamente apenas nós dois. Pai e filho.

Eu precisaria de ajuda. Falei com alguns funcionários, mas estavam todos em serviço. Foi justamente quando estava prestes a desistir e fazer tudo sozinho que o vi. Um homem  de seus sessenta e poucos anos. Largaria em uma hora. Perguntei se estava disponível para ajudar-me com  a pintura e limpeza. Respondeu-me que sim. Que estaria livre em uma hora. Era o tempo que precisaria para comprar tinta, rolos e material necessário. Combinamos o preço, nos separamos e nos encontramos no horário marcado.

Seu nome era Cosme. Disse que era coveiro há aproximadamente quarenta anos. “Definitivamente não deve ser um trabalho fácil”, pensei. Começamos pela pintura do jazigo. Ele fazia tudo com rapidez, mas muito mais bem feito do que eu em minha precisa lentidão. Vendo meu embaraço, quebrou o silêncio.

__ Não tem que ter presa. Isso aqui é moleza. A gente acaba rapidinho.
__ Não estou com pressa. Só não queria deixar todo o trabalho para o senhor.

Olhou-me de cima a baixo pela primeira vez. Deu um meio sorriso e perguntou:

__ Seu pai?
__ Sim
__ Estou indo muito depressa. Você quer fazer também, não é? Não quer terminar rápido. Vamos mais devagar, tá?
__ É... uma espécie de ritual pra mim. Mas não precisamos ir mais devagar. O senhor está me ajudando e está sendo bem mais fácil assim. Já terminou seu turno, deve estar com vontade de ir para casa.

Olhou-me novamente. De maneira fixa dessa vez. Colocou o rolo na bandeja,  foi ao meu encontro para que eu pudesse ver bem seu rosto. Ou talvez para que pudesse ver o meu.

__ Eu vou pra casa. Não estou com pressa. Agora estamos fazendo isso aqui. Vamos fazer bem bonito para o seu pai. Eu não estou com pressa não.

Sorriu. Desconfiado que sou, pensei: “Vai querer uma gorjeta. Um extra. Será que tenho dinheiro que dá?”

__ Muito obrigado.
__ Boas lembranças, né?

Não sabia se queria que a conversa tomasse esse rumo. Mas estranhamente, responder aquela pergunta a aquele homem parecia a coisa certa a fazer.

__ As melhores lembranças. Esse tipo de atitude minha deve parecer uma bobagem para o senhor. Tendo de lidar com esse lugar todos os dias, e... as coisas que acontecem aqui.
__Não parece bobagem nenhuma. As coisas eu acontecem aqui eram muito difíceis quando comecei. Achei que não ia conseguir e pensei em pedir minhas contas já na segunda semana. Mas consegui. Eu inventei um método.
__ Um método? Para se resguardar?
__ Uma maneira de encarar as coisas com distância. Sabe como é, sendo apenas mais um trabalho. Inventar uma estorinha na cabeça para poder funcionar.
__ E conseguiu?
__ Ah, sim. Senão teria desistido. Os sepultamentos nem eram tão difíceis. Por que sempre tem muita gente junto de você. O pior mesmo aram as exumações.

Senti desconfortável em falar sobre exumações naquele momento. Mas não o interrompi.

__ É que na maioria das vezes o funcionário faz sozinho. Raros são os familiares que aparecem, como deveria ser. E como basta um pra fazer o serviço, era uma coisa macabra.

Nada do que dizia era novidade para mim, sabia do procedimento. Eu não queria ouvir aquilo. Mas não parecia que estava falando aquelas coisas para contar vantagem ou me chocar. Senti que era importante para ele. Continuamos.

__ E como o senhor fez?
__ Ah, eu fiz uma coisa na minha cabeça que foi assim... eu olhava para aqueles ossos e pensava: “Não existe vida aqui, não existe nada. É como se fosse unha cortada”.
__ E isso ajudou?
__O que? Isso salvou minha vida, meu filho. Por quarenta anos eu só consegui  fazer esse trabalho por que repassava essa cartilha na minha cabeça. “Não tem vida nenhuma aqui”.

Falou isso sorrindo e abaixou a cabeça para mais uma passada do rolo de tinta branca. Tendo secado o rolo, colocou na bandeja e levantou a cabeça. Olhou para mim e seu rosto indicava que estava prestes a fazer uma grande revelação. Aproximou seu corpo e falou um pouco mais baixo, como que para que eu prestasse mais atenção. Olhos arregalados.

__ Ai, um dia, mudou tudo.
__Como assim “mudou tudo”?

Veio até mim e sentou-se com as pernas cruzadas. Como um praticante de yoga em improváveis jeans surrados e boné de firma de material de construção. Mirando meus olhos, como se quisesse sugar minha alma... ou que eu pudesse enxergar a dele plenamente... começou a contar como tudo “havia mudado”.

__ Eu tinha uma exumação pra fazer. Sem família presente novamente. E lá fui eu. Na gaveta estava escrito um nome... Antônio qualquer coisa... não prestei muita atenção e fiz o de sempre. Querei o lacre, tirei o caixão, comecei a botar os ossos na caixa de transporte. Como a família não se manifestou, aquilo não iria pro ossário. Afinal ninguém tinha pago pra isso. Não é de graça, você sabe. Nesses casos a gente leva pra uma espécie de depósito de todos os ossos...

Os detalhes me incomodavam, mas continuei prestando atenção.

__ ... e quando tinha quase terminado – estava tirando os pedaços de roupa, flor seca, essas coisas – eu vi uma coisa...
__ Uma coisa?
__ É... lá no fundo do caixão meio enrolado nos trapos do forro... sabe o que eu ví?
__ O que?
__ Um ursinho.
__ Como é?
__ Um ursinho. Um desses de brinquedo. De criança, sabe? Aquele material macio...
__ Pelúcia
__Isso! Isso mesmo. Tava todo destruído, claro. Mas ali eu tive que parar. Ei tive que parar, entende? Eu tinha que entender. Será que era uma criança? O caixão nessa hora já está todo destruído e termina de desmanchar quando a gente puxa pra fora. Mas dava pra ver que não era um caixão de criança, sabe? Desses brancos...
__ Então era de adulto.
__ Podia ser de uma criança maior. Nesses casos, muitas vezes o caixão é de adulto. Às vezes um pouco menor. Mas naquele estado não dava pra saber. Pelos ossos também, podia ser um adulto baixo ou uma criança maior.
__ Não tinha nenhuma data perto do nome no lacre?
__ Não. E se tinha não dava pra ver mais por que eu tinha quebrado. Eu podia ir na administração do cemitério e tentar descobrir algo sobre esse Antônio. Mas já era meio tarde. Era meu último serviço do dia. E tinha o meu método de não me envolver, lembra? Porque não tinha vida mais lá.
__ É, como uma unha cortada, não é?
__ Como uma unha cortada...

O olhar de Seu Cosme fitou o nada por alguns segundos, mas logo retomou sua narrativa.

__ Eu pensei: “Pode ser uma criança que os pais quiseram enterrar com o ursinho... “pode ser um pai que o filho quis que levasse o ursinho pra lembrar dele”. Eu não sabia o que pensar.
__ Não dava para ignorar?
__ Não! Não, não... de jeito nenhum. Eu cheguei até a pensar que era... assim... por que eu tenho um filho com mongolismo, e esse é o tipo de coisa que minha mulher faria se ele morresse. Mongolóide é criança pra sempre, você sabe...

Pigarreia para retomar o tom de voz. Ele passava a mão nos cabelos. Coçava a barba mal feita. Olhou para a bandeja de tinta no intuito de continuar o trabalho, mas votou a contar.

__ Naquele momento tudo mudou por que a minha cartilha caiu por terra. Não era mais coisa sem vida. Não era mais unha cortada. Era alguém que tinha sido amado.

Ele não percebia o quão comovido eu estava. Aquele homem e sua verdade se tornaram as coisas mais importantes para mim naquele momento. Ouvia com atenção.

__ E o que o senhor fez?
__ Eu... bom, eu tinha que fazer alguma coisa. Eu tinha que pensar rápido e não tinha mais a minha cartilha. Já tava quase fechando. Eu peguei o ursinho e coloquei na caixa com... com o Antônio. Mas eu não podia levar ele pra o valão. Eu resolvi que ia levar ele para o ossário.
__Mas não tinha de pagar? A família não tinha ido.
__ Eu não ia levar o Antônio pro valão, você entende? Eu fui no lugar lá dos ossários... num lugar com um monte vazio, que nunca chegam a usar... levei e coloquei ele lá. Dentro da caixa própria, que eu roubei do almoxarifado.
__ Não descobriram?
__Não. Tem que fazer obra naquela área e há muito tempo não usam nenhum daqueles. Mas eu não sei, ne? Tinha que ser assim.

As mãos estendidas. Movendo as palmas ásperas, num gestual que dizia que não havia saída.

__ Tampei com uma placa de cimento. Como eu não lembrava o sobrenome e não queria chamar atenção, escrevi apenas “Antônio” e fechei como os outros. Consertei uma floreira quebrada e prendi em baixo com cimento.
__ Não descobriram? Podiam chamar atenção do senhor. Até despedir.
__ Não descobriram não. Eu vou lá todo dia e troco as flores. Às vezes só encontro uma, então fica só uma lá.  Mas sempre tem. Não deixo sem.
__ Mas agora, sem a sua “cartilha”, deve ter ficado difícil trabalhar de novo. Como no início.
__ Ficou sim, mas que nem no início não. Ano que vem já me aposento. Era horroroso, mas agora eu sei que eu tomo conta de gente que foi gostada. Ou que não foi mas deveria ter sido. Meu trabalho é o mesmo, mas é mais importante agora, entende?

Um "momento mágico", meu pai diria.

__ Entendo sim.

Seu Cosme viu meu estado e talvez tenha sentido uma pitada de arrependimento por ter compartilhado tanto comigo. Mais um pouco de tinta e terminamos o trabalho. Ele então sorri e diz:

__ Ficou bom, né?

Olho para  a sepultura, agora bem tratada. Analiso o resultado final de nosso trabalho. Estava feito.

__ Ficou sim.

Seu Cosme caminha até mim e, para minha surpresa, me dá um abraço. Sinto sua mão calejada na minha nuca. Da mesma forma que meu pai costumava me abraçar. Retribuo o abraço. Os últimos raios de sol se vão e a noite nos envolve. Ungido pela aula de humanidade dada por aquele outro homem especial, recebi através dele o “feliz Aniversário” de meu pai.