quarta-feira, 23 de maio de 2012

Solidão de Pele

Du e Lu eram um casal feliz. Resultado de uma conspiração cósmica, gostavam de pensar. Afinal, desfrutavam tanto da companhia, afinidades em comum, dos momentos de amor e proximidade, da segurança de sempre bem vinda presença.

 

Du e Lu eram um casal perfeito.

 

Perfeito?

 

Nada como o conforto de uma velha e sólida amizade para trazer à tona segredos e desabafos. Du estava vivendo um desses momentos. Uma mesa de bar é muitas vezes mais efetiva... e sempre mais afetiva... do que um divã de psicanalista. Momentos confessionais, extremamente necessários agora.

 

__ Não  sei se entendi bem o seu problema, Du. Vocês têm brigado por algum motivo?

__ Não. Não mesmo. Faz tempo que não. Não é isso. 

__ Nenhum conflito?

__ Bom,  “nenhum conflito” é um pouco demais (riso acanhado, seguido por um semblante sério). Não tem briga nenhuma... mais. A coisa chegou num ponto em que é um problema unicamente meu.

__ Outra pessoa. Você encontrou outra pessoa.

__ Eu não encontrei outra pessoa... (as palavras de Du soam cansadas e impacientes, diante do semblante intrigado de quem não fala, mas espera ouvir para que as lacunas do entendimento sejam preenchidas)... eu não encontrei outra pessoa. Eu não quero outra pessoa. (os dedos abertos puxam o cabelo para trás, como um pente vivo). É de Lu que sinto falta.

__ Lu encontrou outra pessoa... (não era uma pergunta, mas uma triste suposição)

__ Eu sinceramente não creio. Não dá pra ter certeza que você conhece alguém completamente. Mas realmente acho que não.

__ Du... eu quero ajudar. Mas se você não explicar, eu não vou poder entender.

__ É, acho que cabe a mim explicar, não é? (Du faz uma pausa, fitando o casal na mesa em frente) Te conheço há muito tempo, posso ir direto ao assunto?

__ Por favor!

Um toque de vergonha. Incomum no rosto de Du

__ Sexo.

__ Sexo?

__ Sexo

__ O resto eu vou ter de adivinhar, ou vem a seguir? (Du de cabeça baixa, em silêncio) Vocês não estão fazendo sexo? Não estão se entendendo na cama? Lu não te satisfaz na cama?

__ Lu tem um desempenho sexual fantástico!

__ Então...

__ Mecanicamente fantástico. (Du interrompe o ímpeto conciliador da frase que não chega a ser completada)

 

Silêncio. Nenhuma pergunta mais é feita. Fica óbvio que o assunto a seguir não se empresta a perguntas.

 

__ Estou ouvindo

__ Faz sem vontade. Mecanicamente bem, mas sem vontade. Não tem vontade de fazer sexo. Tem aversão a intimidade física.

__ Isso não existe. As pessoas podem gostar de coisas diferentes. Podem ter mais ou menos necessidade... mas não gostar de sexo não acontece.

__ Acontece. (Com imenso desânimo) Eu pensava como você. Também não imaginava que isso existisse. Mas eu pesquisei. Existe.

__ Lu... não gosta de sexo...

__ Sim, é isso. Faz por que sabe que é importante para mim... muito importante para mim... f az por amor e por que eu exijo, não por desejo.

__ Exige?

__ Sim. E faço isso por amor também. Não quero que nosso casamento seja apenas amizade. Quero e preciso que seja carnal também. Transgressor e com genitalidade.

__ Olha... eu acho que com o tempo... as coisas esfriam um pouco.

__ Sempre foi assim. Não é desgaste. Eu me recusava a ver, mas sempre esteve lá. A gente só vê, ou deixa de ver, o que quer. É muito fácil se enganar deliberadamente quando se ama.

__ Eu sei.

__ Sabe o que mais me incomoda? O silêncio. Fazer sexo em silêncio. Como quem vai para o cadafalso. Não ouvir que seu corpo é desejado. É tudo claramente um sacrifício para Lu. Eu não sei como as coisas funcionam para as outras pessoas, mas eu tenho de sentir isso. É horrível quando alguém faz sexo com você por “favor”. Acredite em mim. É humilhante. Constrangedor. Pior do que estar doente.

__ O que eu acho estranho  no que você está dizendo, é que... todo resto é perfeito?

__ Todo o resto. Sexo é uma coisa transgressora por definição... eu acho. Esperei a vida inteira para compartilhar isso com a pessoa que amasse. A vida me preparou essa armadilha: Lu é a pessoa que amo, acima de todas as outras.

 

Du chora. Não copiosamente, mas em silêncio. Com os olhos baixos. Sem mudança de expressão no rosto. Por mais mundano que parecesse o assunto, não o era. Falava-se de amor naquela mesa, e de uma grande... enorme infelicidade. Du levanta os olhos e expõe sua alma no silêncio de sua própria tristeza e perplexidade.

 

__ O que você vai fazer? Não estou te julgando. Eu entendo... eu estou vendo (corrige) como se sente. Não tenho conselho para te dar. Apenas pergunto.

__ Não sei. Tenho duas opções... fazer algo ou...

__ Ou o quê?

__ Ou morrer.

__ Vai ter de procurar o que precisa.

__ Vou. E vou morrer um pouco a cada vez, por que meu sonho mais bonito estará sendo reduzido. Reduzido pela minha humanidade. E não tenho vergonha dela. Deveria ter vergonha de ser humano? Estou adiando esse momento o máximo que consigo, mas vai acontecer. Não me sinto traindo ninguém. Eu sim, fui alvo de traição por parte de Lu, que em momento algum me comunicou essa “limitação”. O alvo da traição fui eu.

__ Vou esperar que tudo se acerte da melhor forma para vocês.

__ Eu... (risos nervosos) sou ateu. Mas só me resta esperar que Deus me ajude...

 

Du tem dificuldade em terminar a frase. As mãos amigas se encontram no meio da mesa.

 

__ E me perdoe... (lágrimas). Que possa me predoar... porque o verbo... (cabeça baixa. Silêncio)

__ Fala, Du.

__ Porque o verbo... se fez carne. O verbo se fez carne!

 

O relógio na parede do bar marca as horas. O tempo, a única coisa real em nossa vida. O único bem que realmente nos pertence. Nosso tempo. Logo as pessoas se vão. As portas são fechadas. O silêncio e a escuridão tomam conta do bar, da mesma forma que um dia tomarão conta de cada um de nós. Há de se reverenciar o tempo, pois morrer é ser retirado dele. E é ele o Deus de Du. Apesar de sua falta de fé, o verbo se fez carne para todos. Ateus ou não. Du era carne, e não podia fazer nada em relação a isso. Teria de viver sua humanidade e amar.

 

Separadamente.

 

Du e Lu eram um casal perfeito. Mas Du era muito, muito só.