quinta-feira, 7 de junho de 2012

Matéria Vida


Estranha a solidão que se sente em um cemitério. É mais uma questão de segredos do que de ausência. Como uma biblioteca abarrotada de livros que nunca leremos. Há tanto lá contido!  O que teriam sido aquelas vidas? Momentos felizes, certamente. Tristes. Melancólicos e de desesperança. Gargalhadas e lágrimas ecoam no silêncio das sepulturas. Basta saber ouvir.

Não precisava supor nada sobre a pessoa cujos restos mortais jaziam naquela em particular. Um homem especial, que transbordava em humanidade, a quem chamava de pai, e que tinha me ensinado da poesia e beleza da vida. Eu estava ali para cuidar do que restava... fisicamente... de sua passagem pela terra. Não havia Matéria Vida ali. Mas sempre me fez bem cuidar de seu lugar de descanso. E depois, meu aniversário seria em poucos dias e eu tenho o hábito de ir lá nessa época para que meu pai possa me dar “parabéns” no teatro esquizofrênico da minha cabeça.

Havia algum tempo que ninguém tratava do local. Muito a  fazer. Capim a ser arrancado. Pintura. Paga-se uma taxa de manutenção para essas coisas, mas claro que nada era feito. Ainda mais quando a família abandonava, não fiscalizava ou visitava. Era o caso. Como tantas vezes em vida, éramos novamente apenas nós dois. Pai e filho.

Eu precisaria de ajuda. Falei com alguns funcionários, mas estavam todos em serviço. Foi justamente quando estava prestes a desistir e fazer tudo sozinho que o vi. Um homem  de seus sessenta e poucos anos. Largaria em uma hora. Perguntei se estava disponível para ajudar-me com  a pintura e limpeza. Respondeu-me que sim. Que estaria livre em uma hora. Era o tempo que precisaria para comprar tinta, rolos e material necessário. Combinamos o preço, nos separamos e nos encontramos no horário marcado.

Seu nome era Cosme. Disse que era coveiro há aproximadamente quarenta anos. “Definitivamente não deve ser um trabalho fácil”, pensei. Começamos pela pintura do jazigo. Ele fazia tudo com rapidez, mas muito mais bem feito do que eu em minha precisa lentidão. Vendo meu embaraço, quebrou o silêncio.

__ Não tem que ter presa. Isso aqui é moleza. A gente acaba rapidinho.
__ Não estou com pressa. Só não queria deixar todo o trabalho para o senhor.

Olhou-me de cima a baixo pela primeira vez. Deu um meio sorriso e perguntou:

__ Seu pai?
__ Sim
__ Estou indo muito depressa. Você quer fazer também, não é? Não quer terminar rápido. Vamos mais devagar, tá?
__ É... uma espécie de ritual pra mim. Mas não precisamos ir mais devagar. O senhor está me ajudando e está sendo bem mais fácil assim. Já terminou seu turno, deve estar com vontade de ir para casa.

Olhou-me novamente. De maneira fixa dessa vez. Colocou o rolo na bandeja,  foi ao meu encontro para que eu pudesse ver bem seu rosto. Ou talvez para que pudesse ver o meu.

__ Eu vou pra casa. Não estou com pressa. Agora estamos fazendo isso aqui. Vamos fazer bem bonito para o seu pai. Eu não estou com pressa não.

Sorriu. Desconfiado que sou, pensei: “Vai querer uma gorjeta. Um extra. Será que tenho dinheiro que dá?”

__ Muito obrigado.
__ Boas lembranças, né?

Não sabia se queria que a conversa tomasse esse rumo. Mas estranhamente, responder aquela pergunta a aquele homem parecia a coisa certa a fazer.

__ As melhores lembranças. Esse tipo de atitude minha deve parecer uma bobagem para o senhor. Tendo de lidar com esse lugar todos os dias, e... as coisas que acontecem aqui.
__Não parece bobagem nenhuma. As coisas eu acontecem aqui eram muito difíceis quando comecei. Achei que não ia conseguir e pensei em pedir minhas contas já na segunda semana. Mas consegui. Eu inventei um método.
__ Um método? Para se resguardar?
__ Uma maneira de encarar as coisas com distância. Sabe como é, sendo apenas mais um trabalho. Inventar uma estorinha na cabeça para poder funcionar.
__ E conseguiu?
__ Ah, sim. Senão teria desistido. Os sepultamentos nem eram tão difíceis. Por que sempre tem muita gente junto de você. O pior mesmo aram as exumações.

Senti desconfortável em falar sobre exumações naquele momento. Mas não o interrompi.

__ É que na maioria das vezes o funcionário faz sozinho. Raros são os familiares que aparecem, como deveria ser. E como basta um pra fazer o serviço, era uma coisa macabra.

Nada do que dizia era novidade para mim, sabia do procedimento. Eu não queria ouvir aquilo. Mas não parecia que estava falando aquelas coisas para contar vantagem ou me chocar. Senti que era importante para ele. Continuamos.

__ E como o senhor fez?
__ Ah, eu fiz uma coisa na minha cabeça que foi assim... eu olhava para aqueles ossos e pensava: “Não existe vida aqui, não existe nada. É como se fosse unha cortada”.
__ E isso ajudou?
__O que? Isso salvou minha vida, meu filho. Por quarenta anos eu só consegui  fazer esse trabalho por que repassava essa cartilha na minha cabeça. “Não tem vida nenhuma aqui”.

Falou isso sorrindo e abaixou a cabeça para mais uma passada do rolo de tinta branca. Tendo secado o rolo, colocou na bandeja e levantou a cabeça. Olhou para mim e seu rosto indicava que estava prestes a fazer uma grande revelação. Aproximou seu corpo e falou um pouco mais baixo, como que para que eu prestasse mais atenção. Olhos arregalados.

__ Ai, um dia, mudou tudo.
__Como assim “mudou tudo”?

Veio até mim e sentou-se com as pernas cruzadas. Como um praticante de yoga em improváveis jeans surrados e boné de firma de material de construção. Mirando meus olhos, como se quisesse sugar minha alma... ou que eu pudesse enxergar a dele plenamente... começou a contar como tudo “havia mudado”.

__ Eu tinha uma exumação pra fazer. Sem família presente novamente. E lá fui eu. Na gaveta estava escrito um nome... Antônio qualquer coisa... não prestei muita atenção e fiz o de sempre. Querei o lacre, tirei o caixão, comecei a botar os ossos na caixa de transporte. Como a família não se manifestou, aquilo não iria pro ossário. Afinal ninguém tinha pago pra isso. Não é de graça, você sabe. Nesses casos a gente leva pra uma espécie de depósito de todos os ossos...

Os detalhes me incomodavam, mas continuei prestando atenção.

__ ... e quando tinha quase terminado – estava tirando os pedaços de roupa, flor seca, essas coisas – eu vi uma coisa...
__ Uma coisa?
__ É... lá no fundo do caixão meio enrolado nos trapos do forro... sabe o que eu ví?
__ O que?
__ Um ursinho.
__ Como é?
__ Um ursinho. Um desses de brinquedo. De criança, sabe? Aquele material macio...
__ Pelúcia
__Isso! Isso mesmo. Tava todo destruído, claro. Mas ali eu tive que parar. Ei tive que parar, entende? Eu tinha que entender. Será que era uma criança? O caixão nessa hora já está todo destruído e termina de desmanchar quando a gente puxa pra fora. Mas dava pra ver que não era um caixão de criança, sabe? Desses brancos...
__ Então era de adulto.
__ Podia ser de uma criança maior. Nesses casos, muitas vezes o caixão é de adulto. Às vezes um pouco menor. Mas naquele estado não dava pra saber. Pelos ossos também, podia ser um adulto baixo ou uma criança maior.
__ Não tinha nenhuma data perto do nome no lacre?
__ Não. E se tinha não dava pra ver mais por que eu tinha quebrado. Eu podia ir na administração do cemitério e tentar descobrir algo sobre esse Antônio. Mas já era meio tarde. Era meu último serviço do dia. E tinha o meu método de não me envolver, lembra? Porque não tinha vida mais lá.
__ É, como uma unha cortada, não é?
__ Como uma unha cortada...

O olhar de Seu Cosme fitou o nada por alguns segundos, mas logo retomou sua narrativa.

__ Eu pensei: “Pode ser uma criança que os pais quiseram enterrar com o ursinho... “pode ser um pai que o filho quis que levasse o ursinho pra lembrar dele”. Eu não sabia o que pensar.
__ Não dava para ignorar?
__ Não! Não, não... de jeito nenhum. Eu cheguei até a pensar que era... assim... por que eu tenho um filho com mongolismo, e esse é o tipo de coisa que minha mulher faria se ele morresse. Mongolóide é criança pra sempre, você sabe...

Pigarreia para retomar o tom de voz. Ele passava a mão nos cabelos. Coçava a barba mal feita. Olhou para a bandeja de tinta no intuito de continuar o trabalho, mas votou a contar.

__ Naquele momento tudo mudou por que a minha cartilha caiu por terra. Não era mais coisa sem vida. Não era mais unha cortada. Era alguém que tinha sido amado.

Ele não percebia o quão comovido eu estava. Aquele homem e sua verdade se tornaram as coisas mais importantes para mim naquele momento. Ouvia com atenção.

__ E o que o senhor fez?
__ Eu... bom, eu tinha que fazer alguma coisa. Eu tinha que pensar rápido e não tinha mais a minha cartilha. Já tava quase fechando. Eu peguei o ursinho e coloquei na caixa com... com o Antônio. Mas eu não podia levar ele pra o valão. Eu resolvi que ia levar ele para o ossário.
__Mas não tinha de pagar? A família não tinha ido.
__ Eu não ia levar o Antônio pro valão, você entende? Eu fui no lugar lá dos ossários... num lugar com um monte vazio, que nunca chegam a usar... levei e coloquei ele lá. Dentro da caixa própria, que eu roubei do almoxarifado.
__ Não descobriram?
__Não. Tem que fazer obra naquela área e há muito tempo não usam nenhum daqueles. Mas eu não sei, ne? Tinha que ser assim.

As mãos estendidas. Movendo as palmas ásperas, num gestual que dizia que não havia saída.

__ Tampei com uma placa de cimento. Como eu não lembrava o sobrenome e não queria chamar atenção, escrevi apenas “Antônio” e fechei como os outros. Consertei uma floreira quebrada e prendi em baixo com cimento.
__ Não descobriram? Podiam chamar atenção do senhor. Até despedir.
__ Não descobriram não. Eu vou lá todo dia e troco as flores. Às vezes só encontro uma, então fica só uma lá.  Mas sempre tem. Não deixo sem.
__ Mas agora, sem a sua “cartilha”, deve ter ficado difícil trabalhar de novo. Como no início.
__ Ficou sim, mas que nem no início não. Ano que vem já me aposento. Era horroroso, mas agora eu sei que eu tomo conta de gente que foi gostada. Ou que não foi mas deveria ter sido. Meu trabalho é o mesmo, mas é mais importante agora, entende?

Um "momento mágico", meu pai diria.

__ Entendo sim.

Seu Cosme viu meu estado e talvez tenha sentido uma pitada de arrependimento por ter compartilhado tanto comigo. Mais um pouco de tinta e terminamos o trabalho. Ele então sorri e diz:

__ Ficou bom, né?

Olho para  a sepultura, agora bem tratada. Analiso o resultado final de nosso trabalho. Estava feito.

__ Ficou sim.

Seu Cosme caminha até mim e, para minha surpresa, me dá um abraço. Sinto sua mão calejada na minha nuca. Da mesma forma que meu pai costumava me abraçar. Retribuo o abraço. Os últimos raios de sol se vão e a noite nos envolve. Ungido pela aula de humanidade dada por aquele outro homem especial, recebi através dele o “feliz Aniversário” de meu pai.