"A virtude é bonita, mas exala um tédio
homicida." (Nélson Rodrigues)
Mais um dia no escritório.
A mesmice começa no elevador. Paulo já nem levanta os olhos. Sequer para checar
se seu andar já chegou. Parece que sua mente sabe o tempo que leva. Seu sexto
sentido consegue calcular, instintivamente, quantas paradas aconteceram e quanto
falta para que finalmente levante o rosto e veja a porta abrir. Os mesmos
rostos. Já não os fita. Não saberia dizer se alguém cortou o cabelo, deixou a barba
crescer, ou se alguma mulher está particularmente bem arrumada. Simplesmente
não interessa. Enche o pequeno copo plástico de café da garrafa térmica e caminha
em direção à sua sala.
Entra e fecha a porta. Tira
o paletó. O ar-condicionado está sempre ligado, apesar de não parecer. Só o
barulho do aparelho o denuncia, já que calor é insuportável. Por que não colocam na potencia alta nos dias
quentes como esse? Já nos dias frios, congela-se. Seria preferível agora a janela aberta, e
talvez uma leve brisa para que o ambiente não ficasse tão abafado. Mas sequer
sabe como se abre essa janela. Em tantos anos nesse escritório, nunca a viu
aberta.
Droga! Será que nunca vão
consertar essa cadeira? Ou melhor ainda, troca-la. Isso o incomodava demais!
Nada parece adequado. Tudo está em seu lugar como sempre. Mas como sempre, as
coisas parecem estar no lugar errado. Não que Paulo saiba qual seria o lugar
certo das coisas. Mas não há harmonia em nada ao seu redor. Em nenhum sentido.
Isso é inegável, certo?
Certo?
Começa a trabalhar.
Folheia os documentos em sua mesa. Estranho... parecem os mesmos papéis, os mesmos
relatórios de ontem. E anteontem. E do dia anterior. Seriam? Não, claro que
não. Não faria sentido. Mas também, quem se importa? A irrelevância do trabalho
que faz todos os dias parece uma entidade à parte. Um ser amorfo, escondido atrás
das cortinas. O carcereiro silencioso de sua rotina desimportante.
É um bom emprego, isso não
pode ser negado. Quer dizer, é um salário que cobre suas necessidades. Suas
necessidades... Bem, Paulo sabe que faz parte de uma minoria desse país. Trabalha
em uma firma com credibilidade. Sabe que parentes e amigos próximos sentem uma
certa inveja dele. Ah, se eles ao menos soubessem...
Ser um “homem de bem”,
modelo do que a sociedade acredita ser o ideal, é uma coisa por demais
opressora. O preço da aprovação de todos e da admiração de alguns é alto. Não
se saber feliz ou infeliz. Afortunado ou vítima da maior das desgraças: Uma existência
tediosa. Enfadonha e desinteressante ao ponto de não se lembrar mais se algum dia houve uma ambição diferente. Se
algum dia houve qualquer ambição. Algo que fizesse o coração bater mais forte.
Que desse algum motivo para sair da cama todas as manhãs. Como seria bom ter
isso.
Ora, mas não era tão ruim
assim. Tinha um casamento sólido, estabilidade e estava relativamente seguro em
relação aos anos de aposentadoria. E depois, tinha o plano de saúde, extensivo
aos familiares. Estava garantido.
Estava garantido e seguro
de como sua vida seria. Até o fim.
E ali, naquele escritório,
tinha a impressão que nada mais existia. Sua janela dava para outro prédio. Um
mais alto. Era possível ver outros infelizes em seus cubículos. Havia também o
consultório do dentista, sempre com a persiana abaixada até a metade da janela.
Jamais foi possível ver seu rosto. Apenas um jaleco branco da cintura para
baixo. Poderia ser um jovem, ou um homem de cem anos. A rua, carros e pessoas
transitando. Tudo tão pequeno e tão rápido. Era um mundo hostil, aquele das
calçadas. Uma barulhenta procissão de pessoas indesejáveis em seu caminho rumo
ao escritório. Não percebia qualquer poesia naquela urbanidade a qual era
exposto todos os dias, ao chegar e ao partir.
Ah, a maldita cadeira.
Rangia e deixava o encosto sempre em um ângulo desfavorável. Será que nunca
seria trocada? Tira o paletó e afrouxa o nó da gravata. O telefone toca, mas é
ignorado. Na mesa de trabalho, porta retratos com fotos da esposa e filhos.
Tenta lembrar-se de quando teriam sido batidas. Não faz a menor ideia. Talvez
uma festa. Talvez Natal. Apesar de estar em todas elas, é como se fosse outra
pessoa ali. Sorrindo.
Paulo tinha memória de si
mesmo quando criança, portador de uma esperança sem tamanho no futuro.
Alimentada pelas cores dos desenhos animados e das revistas em quadrinhos. O
mundo que aguardava o adulto que se
tornaria era brilhante, excitante em todos os momentos. Havia uma promessa
implícita de felicidade, de final feliz, como nos filmes da Sessão da Tarde. Parecia
agora ter caído no futuro errado. Como um animal preso em uma armadilha. Sem
cores, sem sol, sem céu. Sem os arco-íris que desenhava com seus lápis de cera.
Paulo adorava desenhar quando criança.
Quando de um teste
psicotécnico para admissão de um emprego, que por sinal acabou não passando, pediram-lhe
que desenhasse uma paisagem bucólica. Desenhou o sol, arco-íris, flores e
árvores de sua infância. Na avaliação, foi perguntado por que não havia chão sob as árvores. Estariam elas
flutuando no ar? Árvores não possuem raízes no solo? Onde estava o solo? Onde
estavam as raízes? Paulo não cometeu esse
erro uma segunda vez. Sabia muito bem onde ficava o solo, e suas raízes estavam
bem solidamente fincadas nesse cotidiano que incluía sua segurança, mas excluía
sua individualidade. Sua capacidade de sonhar.
Levanta-se de sua cadeira essa
responde com um rangido. Chega até a janela e curva o pescoço na mais improvável
das posições, tentando visualizar algum pedaço de céu. Impossível uma janela
que não mostre o céu! A criança que ele foi, pelo menos, jamais desenharia uma
janela assim. Paulo se sente tão desconfortável.
Queria poder libertar seu corpo daquela cela. Libertar seu espírito daquele
corpo.
Começou por tirar a
gravata. Em seguida a camisa. Sentia-se melhor, menos o personagem que
detestava ser na estória que não escreveu. Ou escreveu? Sua pele finalmente
conseguia sentir o ar-condicionado. Não demorou para que tirasse toda a roupa.
Paulo fecha os olhos e se permite um sorriso. Tranca a porta do escritório.
Dirige-se à janela e procura o trinco. Não é possível que tenha sido projetada
para ficar sempre fechada. Não encontra nada. É como se o próprio ar natural
lhe fosse negado.
Precisava do ar. Precisava
do céu.
A nudez facultava-lhe uma
liberdade jamais sentida. Como um salvo-conduto em sua busca por realidade. Não
a do bom emprego, marido e pai exemplar. A realidade intangível... e inegável
dos desenhos de sua infância. Ungido de santa ira contra o fiapo de ser humano
que se tornara, Paulo quebra o vidro usando sua luminária de mesa. Ele tinha
razão. Há uma brisa que sopra. Haverá céu
também. Um céu azul com arco-íris à sua espera. Não há tempo a perder. Muito já
foi perdido. Coloca meio corpo para fora da janela e olha para cima a procura
do céu. Ainda não o vê. Volta para dentro.
Paulo percebe que há sangue em
suas mãos, e que pessoas começam a bater insistentemente à sua porta. Tanto o
sangue quanto o barulho são irrelevantes. Ele tem uma missão. Um céu a
encontrar. Dessa vez, sai com o corpo todo e fica em pé no peitoril externo.
Estica o pescoço e consegue ver o céu. Azul, com nuvens brancas. Boquiaberto,
percebe que bem longe, no horizonte, há um arco-íris. Como uma criança, um
pássaro, um Deus... Paulo, nu, estica
seus braços. Da um passo para frente. Quem disse que as árvores não podem
flutuar no ar? Quem disse que os sonhos precisam ter raízes?
Na semana seguinte, o substituto
de Paulo chegou à firma. Um jovem e promissor executivo. Foi dada a ele a mesma sala, já com a janela
consertada.
A cadeira que rangia,
havia sido trocada por uma nova.