sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Sob o impulso da inércia



                                                      Inércia: subst. f. falta de movimento, apatia



Quando Silvio e Edna se conheceram, foi amor à primeira vista. Um encontro  de almas cuja qualidade era acima do esperado. Silvio, pelo menos, não acreditava que isso fosse possível naquela altura de sua vida. O “bom encontro” de Nietzsche. Aquele que fazia a vida reluzir e aquecer a existência. Não demorou para serem um casal.



Passados os primeiros anos da união, veio a rotina. Silenciosa e paciente assassina das sensações. Lugar comum... a chama da sensorialidade, que apesar do imenso afeto, nunca tinha chegado a ser verdadeiramente uma chama, tornava-se progressivamente menos quente. Tépida. Isso era um problema para Silvio, já que tal emoção era muito importante para ele. Porém, mais importante era seu amor por Edna, a proximidade dos dois. De corpo e alma.



O problema era que a proximidade de corpo foi ficando mais e mais escassa.



Sabendo da natureza de sua amada ser completamente diferente da dele próprio, Silvio acabou aceitando... não depois de alguns bons atritos... as coisas como elas eram. Pediu, entretanto, que um pequeno ritual fosse mantido. Que ambos dormissem sempre nus, possibilitando carícias e eventuais “conchinhas” durante a noite. Nada muito picante. Quase infantil, na verdade. Não era pedir muito. Afinal, viver junto era para ser somar e dividir por dois. Não subtrair um do outro. Edna concordou sem muito entusiasmo, mas manteve a palavra.



Ambos tinham dias de trabalho exaustivos. Como quase todo casal, era quase sempre  refeição,  televisão e cama. Com a intimidade, fica fácil negligenciar o espaço afetivo. Tomar  liberdades como se permitir falar pouco, e  que a televisão fosse a voz ativa da casa, enquanto ambos mergulhavam em seus computadores. Mesmo sem necessidade. Um vício como outro qualquer. Uma zona de conforto. Dias iguais fazem isso com as pessoas. Como se a vida fosse durar para sempre. Como se relacionamentos não precisassem de manutenção, exatamente como a TV e o computador. Só que com menos urgência aparente, já que o amor resolvia tudo.



Não era assim?



Entre uma  navegada na internet e uma olhada na novela ou no programa do dia, Silvio muitas vezes virava para o lado e via Edna adormecida. Ele era sempre o último a dormir. Talvez por ser mais velho, sabia o quão efêmero e traiçoeiro o tempo pode ser, se não for bem administrado. “Meu Deus! Isso já tem dez anos??” Era sempre um sentimento desagradável esse de ser refém do tempo.



Ficava mais tempo no computador, então. Desligava a TV. Por ele, nem chegaria a liga-la mesmo. E quando era hora de ir para cama, frequentemente frustrava-se ao ver que sua parceira não havia tirado as roupas. Naquele dia em particular, estava de calcinha e camiseta. Como Silvio amava aquele corpo. Não querendo incomodar, abriu a gaveta de Edna e pegou uma para cheirar. Ele a desejava como no primeiro dia. Não raro, masturbava-se sentindo no rosto a maciez da peça  e inebriando-se com os odores daquela a quem amava acima de todos..



Não muito tempo depois desse dia, Edna, que havia mais uma vez dormido vestida, tem uma surpresa ao despertar. Ao seu lado está Silvio. Dormindo tranquilamente... usando uma de suas calcinhas. Após alguns segundos de incredulidade, acorda o marido.



Silvio... Silvio... Acorda


(espreguiçando) Ah... Bom dia, amor.


Silvio... que porra é essa?


Não gostou? É sua.


Eu sei que é minha. Eu perguntei que porra é essa!


Nada. Nada de mais. Só que eu resolvi que quando você esquecer de tirar a roupa, eu vou lembrar de colocar uma calcinha em mim. São bem confortáveis, eu não sabia. Bem diferente de cueca. Bem mais macia.


Deixa de ser criança. Que represaria mais infantil... eu às vezes estou muito cansada e desmaio como estiver. Não assinei nenhum contrato em sangue. Você tem cada uma...


Calma. Não seja tão impaciente. Se tem uma coisa que aprendi com você é que conflito é  inútil, e que ninguém faz o que não quer. Só que isso vale para mim também.




Diante do sorriso cínico do marido, Edna resolve não  esticar o assunto. Melhor sempre não fazer nada e deixar que as coisas voltem ao normal sozinhas. Só que, após alguns dias de observância da promessa inicial de dormir sem roupas, o episódio da calcinha se repetiu. Edna limitava-se a fazer uma cara feia. Assim mesmo bem rapidamente, para não “dar cartaz”.  E foi assim mais algumas vezes.



Até que parou.



Eu uma manhã se domingo, acordou vestida e viu que Silvio dormia ao seu lado. Nu. Sem calcinha. “Conheço o meu gado” pensou. Levantou-se... era sempre a primeira a acordar...e foi preparar seu café.







Em outro dia, Silvio teve de acordar mais cedo por causa do trabalho. Beijou-a na testa sem querer perturbar e despediu-se. Edna dormiu um pouco mais naquele dia. Quando finalmente despertou, foi cuidar de seu ritual matinal de banho, café e vestir-se para o trabalho. Ao abrir o armário para pegar sua roupa, viu lá no fundo, meio que escondido, uma sacola plástica grande. Pegou para ver o que era. Havia roupas lá dentro. Roupas de mulher! E não eram dela! Será que Silvio teria uma amante? Eram roupas muito caras, de bom gosto. Entre chocada e incrédula, pensou: “Quando Silvio chegar hoje à noite, vamos ter uma conversa muito séria”. Colocou a sacola novamente no fundo do armário e saiu para o trabalho perturbada.



Foi um dia longo. Incapaz de concentrar-se em suas tarefas rotineiras, resolveu ir para casa mais cedo esperar pelo marido. Havia muita coisa para ele explicar. Inventou uma desculpa para o chefe, que a liberou sem contestar, já  que não era de seu feitio fazer coisas assim. Chegando em casa, abriu a porta e viu que havia luzes acesas. Silvio já tinha chegado. Melhor assim. Não gostava de esperar.



Ao entrar no quarto, teve uma surpresa que a deixou literalmente de queixo caído. Diante de si estava Silvio, que também chegara mais cedo para esperar pela esposa. Vestido de mulher dos pés à cabeça. Sapato salto agulha, peruca e maquiagem pesada. Edna estava sem palavras. Foi seu marido quem falou. Calma e pausadamente.



Que bom que chegou, Edna. Precisamos ter uma conversa.







Dois anos depois, Edna recebe um cartão postal de Silvio. Agora Silvia. A cirurgia de mudança de sexo havia sido bem sucedida e a recuperação seria longa e dolorosa, mas Silvio estava animada. Contava no cartão que mal podia esperar para encontrar Edna. Que agora poderiam ser próximas de uma maneira que era impossível pra ele antes, mas que era obviamente a única que interessava Edna. Silvio dizia que o fato de ambas terem parceiros diferentes, não significava que não eram almas gêmeas.



Edna sentia que havia perdido algo, apesar de não saber exatamente o quê.