quinta-feira, 29 de setembro de 2011

O Espelho


Quem conhecia Darci, tinha a ideia de uma pessoa otimista, alegre e bem resolvida. Mas Darci estranhamente se ressentia dessa sua imagem social. Nem era tanto ressentimento quanto perplexidade pela ironia que isso representava, pois havia um outro mundo. Um universo paralelo de mágoas profundas e inconfessáveis. Pedaços faltando.
Era mais fácil cultivar esse personagem, essa casca de brilhante adequação, já que internamente, Darci era apenas falta. Não conseguia oferecer a si sequer uma fração do que as outras pessoas achavam ver tão claramente aflorar de seus poros.

Dori era sua cara metade. O relacionamento era tido como uma conquista para Darci. Claro que não era algo perfeito, como nada nessa vida consegue ser. Porém, havia afeto, parceria, carinho, amor... Tais coisas, após várias e infrutíferas tentativas, vieram tarde na vida de Darci, e não eram desprezadas de forma nenhuma. Tinha certeza de estar com a pessoa certa.

Quanto às imperfeições, havia tempo que Darci não lutava mais contra elas. Sofrimento? Certamente. Mas sabia que amor verdadeiro era difícil de encontrar. E para desfrutar esse raro e feliz encontro, era necessário flexibilizar seus padrões de exigência e expectativa em relação ao ser amado. E assim foi feito.

Levando em conta a enorme quantidade de frustrações em sua vida, seu passado, Darci poderia considerar seu novo comportamento um progresso. Uma mudança de padrão que lhe trouxe paz. A compreensão de que sua reação, seu comportamento para com suas frustrações acabavam sempre sendo como um caleidoscópio. As cores mudam, mas a simetria persiste. O insucesso em promover mudanças era o desfecho. Descobrir que nadar contra a correnteza não é o segredo da felicidade foi algo importante.

Assim, o conflito dava lugar... ao silencio.

Darci tinha o hábito de divagar, fixar os olhos em um ponto qualquer e deixar que seus pensamentos preenchessem os espaços. Não era tristeza, apenas abandono. Também cansaço de batalhas passadas. Quixotescas guerras por legitimidade Familiar. Legitimidade de todas as formas, na verdade. Seu maior sonho, seu maior “fetiche” era essa coisa. Essa palavra mágica que carregava o poder de fazer com que você se sinta em casa, aonde quer que esteja. Pertencer a algo. Não ser uma criatura avulsa. Não conseguiu com seus pais, irmãos, cônjuges passados... Já não entrava no mérito de qual seria a razão das coisas serem assim. Não lhe interessava a energia gerada pela auto piedade. Sequer descartava sua própria responsabilidade nisso tudo.

Darci apenas divagava.

Durante esses aparentes lapsos, Dori – que pessoalmente calava mais do que falava – como que se incomodava com a suposta distancia de Darci, e chamava-lhe a atenção.

-- No que você está pensando?
-- Em tudo ao mesmo tempo.
-- Não da para pensar em tudo de uma vez.
-- Não dá para parar o pensamento sobre uma coisa ou outra, como se fosse um helicóptero. Mas dá para ter uma visão geral.
-- E o que você vê?
-- Vejo a mim, só no meio dos eventos que me envolvem e excluem ao mesmo tempo.
-- Já sei. Sua família, seus irmãos...
-- Eles também, mas todas as famílias das quais nunca consegui ser membro efetivo, mesmo tendo participado de tantas. Participado à margem.
-- Mas eles te procuram.
-- Requerem minha presença física vez por outra, mas nunca a espiritual. Minha família me quer de coadjuvante na vida deles. Logo, eu não os tenho.
-- Família nenhuma é perfeita. Acha que a minha é?
-- Trocaria alegremente a imperfeição da sua pelo teatro da minha. Já vi a sua em ação. E, apesar de não ser perfeita, é uma família de fato e de direito.
-- Não seja por isso, quer estar lá com eles?

As palavras de Dori eram doces, atenciosas e bem intencionadas. Mas também eram indisfarçavelmente protocolares, e não havia ninguém ali para se iludir em relação a isso. Era uma oferta proforma.

Darci abaixou seus olhos e tom de voz pra produzir a resposta que tal oferta, por mais ilusória que fosse, merecia.  

-- Se a sua família me quisesse por perto, a essa altura eu já saberia.

Não soou como um desaforo ou cobrança, pois não era o caso. Era, de fato, assim que as coisas se apresentavam. Uma condição na verdade comum para muitos na mesma situação das duas pessoas naquela sala. Se tal fato dizia pouco ou nada a Dori, era a própria morte em vida para Darci. Prova inconteste de sua indigência social. A negação de um possível canal de afetividade e acolhimento, que mais uma vez, a vida insistia em lhe negar.

Darci observava o sono de Dori. Seu rosto sereno, a paz de uma alma leve e bela. Seria impossível amar alguém com mais intensidade. Achava bom sempre adormecer depois. Assim podia vislumbrar a poesia contida no ser amado, e prestar-lhe reverência sob o manto silencioso da noite.

E então era chegada a hora do ritual dos detalhes. De ver cada móvel, cada sombra, ouvir cada som. Tocar os objetos no escuro do quarto sem enxerga-los e deixar que eles contassem suas estórias. Dissessem seus nomes. Redescobrir os fragmentos de vida que cada um deles continha. Sorver a memória que guardavam. Uma forma de procurar sentido na solidão imposta pelo exílio afetivo compartilhado por todos os marginais do mundo.

Então... o espelho, o mesmo que estivera sempre lá, se revela como algo novo. Uma entidade de natureza diferente daquilo que durante o dia reflete, com fidelidade, imagens iluminadas. Como todos os outros objetos da noite, ele também tem uma estória a contar agora. Como a tela de um cinema mágico, Darci vê seu próprio rosto. Seu próprio corpo. Mas o diálogo da pouca luz com a bela sombra noturna revela um ser inusitado. E Darci se olha com a generosidade que em geral seus olhos emprestam aos outros. Gosta do que vê. Enxerga fragilidade e força. Pequenez e beleza. Humanidade. Enxerga afeto e... aceitação.

Darci sorri com entusiasmo. Surpreende-se ao perceber que uma lagrima molha seu rosto. Toca o espelho. O vidro é frio, mas acolhe calorosamente. Somente aquela pessoa poderia dar-lhe isso. Como o abraço de um velho amigo. Darci sabia disso agora. Só agora.

Finalmente havia chegado em casa

Feliz aniversário, Pedro.




Um comentário:

  1. Belíssimo! Sinceridade, honestidade e verdade estão presentes no texto. Perfeito na forma e na dosagem. Mas acima de tudo: repleto de sentimento real do seu início até o fim. Trata-se de um presente para todos que o podem ler. O que mais dizer? Ik hou van je... ;)

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